Um
dos modos talvez mais simples e menos polêmicos de se caracterizar a filosofia
é através de sua historia - forma de pensamento que nasce na Grécia antiga, por
volta do séc. VI a.C. [...]
Se
afirmamos que o conhecimento científico, de cuja tradição somos herdeiros,
surge na Grécia por volta do séc. VI a.C., nosso primeiro passo deverá ser
procurar entender porque se considera que esse novo tipo de pensamento aparece
aí pela primeira vez e o que significa essa “ciência” cujo surgimento coincide
coma a emergência do pensamento filosófico.
Quando
dizemos que o pensamento filosófico-científico surge nana Grécia,
caracterizando-o como uma forma especifica de o homem tentar entender o mundo
que o cerca, isto não quer dizer que anteriormente não houvesse também outras
formas de se entender essa realidade. É precisamente a especificidade do
pensamento filosófico-científico que tentaremos explicitar aqui, contrastando-o
com o pensamento mítico que lhe antecede na cultura grega. Procuraremos
destacar as características de uma e de outra forma de explicação do real.
O
pensamento mítico consiste em uma forma pela qual um povo explica aspectos essenciais
da realidade em que vive: a origem do mundo, o funcionamento da natureza e dos
processos naturais e as origens deste povo deste povo, bem como seus valores
básicos. O mito caracteriza-se, sobretudo pelo modo como estas explicações são
dadas, ou seja, pelo tipo de discurso que constitui. O próprio termo grego mythos
significa um tipo bastante especial de discurso, o discurso fictício ou
imaginário, sendo por vezes até mesmo sinônimo de “mentira”. [...]
Por
ser parte de uma tradição cultural, o mito configura assim a própria visão de
mundo dos indivíduos, a sua maneira mesmo de vivencia esta realidade. Nesse
sentido, o pensamento mítico pressupõe a adesão, aceitação dos individuas, na
medida em que constitui as formas de sua experiência do real. O mito não se
justifica, não se fundamenta, portanto, nem se presta ao questionamento, à
crítica ou à correção. Não há discussão do mito porque ele constitui a própria
visão de mundo dos indivíduos pertencentes a uma determinada sociedade, tendo,
portanto um caráter global que exclui outras perspectivas a partir das quais
ele poderia ser discutido. [...]
Um
dos elementos centrais do pensamento mítico e de sua forma de explicar a
realidade é o apelo ao sobrenatural, ao mistério, ao sagrado, à magia. As
causas dos fenômenos naturais, aquilo que acontece aos homens, tudo é governado
por uma realidade exterior ao mundo humano e natural, superior, misteriosa,
divina, a qual só os sacerdotes, os magos, os iniciados, são capazes de
interpretar, ainda que apenas parcialmente. [...]
É
Aristóteles... que afirma ser Tales de Mileto, no séc. VI a.C., o iniciador do
pensamento filosófico-científico. Podemos considerar que este pensamento nasce
basicamente de uma insatisfação como o tipo de explicação do real que
encontramos no pensamento mítico. De fato, desse ponto de vista, o pensamento
mítico tem uma característica até certo ponto paradoxal. Se, por um lado,
pretende fornecer uma explicação da realidade, por outro lado, recorre nessa
explicação ao mistério e ao sobrenatural, ou seja, exatamente àquilo que não se
pode explicar, que não se pode compreender por estar fora do plano da
compreensão humana.
É
nesse sentido que a tentativa dos primeiros filósofos será de buscar uma
explicação do mundo natural (a physis, daí o nosso termo “física”)
baseada essencialmente em causas naturais... A chave de explicação do mundo de
nossa experiência estaria então, para esses pensadores. No próprio mundo, e não
fora dele, em alguma realidade misteriosa e inacessível.
O
pensamento filosófico-científico representa assim uma ruptura bastante radical
com o pensamento mítico, enquanto forma de explicar a realidade.
Entretanto,
se o pensamento filosófico-científico surge pro volta do séc. VI a.C., essa
ruptura com o pensamento mítico não se dá de forma completa e imediata. Ou
seja, o surgimento desse novo tipo de explicação não significa o
desaparecimento por completo do mito, do qual alas sobrevivem muitos elementos
mesmo em nossa sociedade contemporânea, em nossas crenças, superstições,
fantasias, etc., isto é, em nosso imaginário. O mito sobrevive ainda que vá
progressivamente mudando de função, passando a ser antes parte da tradição
cultural do provo grego do que a forma básica de explicação da realidade. [...]
É
claro que essa mudança de papel do pensamento mítico, bem como a perda de seu
poder explicativo resultam de um longo período de transição e de transformação
da própria sociedade grega, que tornam possível o surgimento do pensamento
filosófico-científico no séc. VI a.C. O pensamento mítico, com seu apelo ao
sobrenatural e aos mistérios, vai assim deixando de satisfazer as necessidades
da nova organização social, mais preocupada com a realidade concreta, com a
atividade política mais intensa e com as trocas comerciais. É nesse contexto
que o pensamento filosófico-científico encontrará as condições favoráveis para seu
nascimento. [...]
O
caráter global, absoluto, da explicação mítica teria se enfraquecido no
confronto entre os diferentes mitos e tradições, revelando-se assim sua origem
cultura: o fato de que cada povo tem sua forma de ver o mundo, suas tradições e
seus valores. Ao mesmo tempo, em uma sociedade dedicada as praticas comerciais
e aos interesses pragmáticos, as tradições míticas e religiosas vão perdendo
progressivamente sua importância. Esta é uma hipótese que parece razoável, de
um ponto de vista histórico e sociológico, e mesmo geográfico e econômico, para
a explicação do surgimento do tipo de pensamento inaugurado pro Tales e pela
chamada Escola de Mileto, naquele momento e naquele contexto.
MARCONDES,
Danilo. Iniciação à História de Filosofia. Dos Pré-socráticos a
Wittgensteisn. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. 7ª Edição.
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